29 maio, 2008

Vitória Régia

No mistério das águas profundas dos rios e dos lagos amazônicos há sempre uma estória para contar. Não há quem, tendo visto uma vitória-régia em toda sua plenitude, adornando um lago ou enfeitando um rio, possa esquecer aquele cenário de verdadeiro encantamento. O remanso dos rios ou o lago que é seu viveiro, são os espelhos de Jaci, a Lua, vaidosa e sedutora, reflete-se para chamar a atenção das caboclas que a têm como visão do amor.

No cume das colinas, as cunhãs esperavam o aparecimento de Jaci, acreditando que ela trouxesse o bem do amor, pois seu beijo tornava-as iluminadas, desmaterializando-as e transformando-as em estrelas...

Algumas maravilhosas lendas se teceram em torno desse assunto e, em uma delas, que descrevo logo abaixo, é a Lua, com toda sua magia, que irá criar a vitória-régia, para que tão bela quanto as estrelas do céu, se torne uma "estrela da água", com um perfume inconfundível que jamais foi dado a uma flor...



LENDA DE NAIÁ

Na manhã do mundo, no seio de uma primitiva tribo, contavam os velhos pajés adivinhos, Senhores de todos os segredos da natureza que, quando a Lua ainda era considerada um deus masculino e ainda quando esta se escondia por detrás dos montes da serra, coabitava com as virgens de sua predileção.

O encanto destes encontros era de tal grandeza e beleza, que os velhos sábios não possuíam palavras humanas para descrevê-los, deixando as entrelinhas a cargo de nossa imaginação.

Aconteceu que a jovem guerreira Naiá, filha do venerável chefe, princesa da tribo, de alva pele e cabeleira muito ruiva tal qual uma espiga de milho verde, se impressionara com a sugestiva fantasia daqueles amores lunares. E, por isso, no avançar da noite, quando o sono fechava a vida da taba, e a erótica divindade sedutoramente simulava tocar suas mechas de cabelo, a cunhã galgava as montanhas buscando mergulhar sua alma na insolvência daqueles luminosos afagos, tão exaltados pelos convincentes anciãos.

Afirmavam eles que a deusa hemafrodita, com a irradiosa insuflação dos seus beijos, transmutava em luz o corpo das virgens predestinadas, apagando-lhes completamente a tinta de sangue vermelha, vaporizando-lhes a carne. E fugia em seguida, conduzindo as afortunadas amantes, sugando-lhes a vida, para deixá-las, assim desmaterializadas, nos leitos nupciais das nuvens elevadas.

E, desta forma iam nascendo as estrelas do céu....

Naiá ansiava pela maravilhosa mudança do seu grosseiro e cotidiano viver terreno para aquela divina existência eterizada. Mas a realidade enganava-a constantemente, passava as noites perseguindo o noivo celestial que debruçava-se de colina em colina, cada vez mais fascinante, entretanto, mais fugitivo de sua doentia paixão.

A virgem guerreira, definha suspirosa e sofredora. Não houve poções, feitas pelas mãos miraculosas dos pajés, nem sobrenaturais sortilégios de elevada magia, capazes de curá-la daqueles obsessivos anseios. E assim, vivia essa jovem enferma, a vagar nas noites enluarada, dilacerando-se pelas íngremes escarpas, uma psicose viva, corporificada, entre lágrimas e soluços, cantando os seus delírios.

Certa vez, quando a sombra da insânia mais anuviava o toldo do entendimento, viu no espelho de um lago, feliz e tranqüilo, a imagem do pálido bem amado. Atirou-se em busca do ser iluminado, bracejando agônicos paroxismos.

Semanas inteiras a tribo debateu-se inutilmente em sua busca.

Os deuses selvagens, entretanto, eram bons e agradecidos. A Lua, que gerara as águas, os peixes e as plantas aquáticas, quis recompensar o sacrifício daquela vida virgem. Fê-la então estrela das águas, poema triunfal de cor e perfume, que cantará eternamente em nossa flora.

E, ao nascer do branco corpo da cunhã, a misteriosa flor, desabrochou com intensa candura de espírito na grande flor perfumada, transformando em espinhos toda a mágoa que tiranizava a jovem índia. Depois, dilatou o quanto pode, a palma de suas folhas, para tornar maior o receptáculo dos afagos da sua luz, amorosamente ofertada.

Todas as noites, Naiá desnuda-se, arrumando jeitosamente as esvoaçantes e longas pétalas, para receber, no tálamo das águas mansas, os beijos apaixonados do luar.


LENDA GUARANI

Dois jovens indígenas se amavam, como sabem amar os que vivem longe dos tentáculos da civilização. Moroti, uma morena linda como Iracema e Pitá, um rapaz forte e o mais bravo dos guerreiros.

Viviam pelas matas correndo e caçando com que organizavam encantadoras grinaldas e pescando, na mansidão das lagoas, os peixes mais saborosos.

Um dia, Moroti quis experimentar até que ponto ia o amor que lhe devotava Pitá e, tirando do braço uma pulseira de contas silvestres, arremessou-a no rio Paraná, ao mesmo tempo que dizia:

-"Querem ver o que este guerreiro é capaz de fazer por mim?"

Estava a margem cheia de índios que ali haviam se reunido para uma pescaria, início de grandes folguedos. E Moroti não quis deixar escapar a oportunidade de mostras às suas amigas, como era amada pelo mais valente varão daquelas terras.

Assim que o bracelete da doce amada feriu a superfície das águas, Pitá, num mergulho nervoso, atirou-se no Paraná, procurando apanhá-lo.

Moroti ficou sorrindo, como só as filhas trigueiras das selvas sabem sorrir. As risadas dos que assitiam à cena, adveio um silêncio constrangedor, pois o índio não voltara à tona. As mulheres choravam, os homens lamuriavam-se, apenas Moroti continuava a sorrir...

Foi chamado às pressas o pajé, para explicar o que tinha acontecido.

A passos apressados veio o feiticeiro da tribo, e, depois de meditar profundamente, com voz compassada, explicou:

-"Pitá a esta hora está num palácio encantado, recebendo os carinhos da fada das água (cunhã payé)".

Moroti deixou de sorrir. E o pajé continuou:

-"Assim que Pitá mergulhou, a loira cunhã das águas levou-o para o seu palácio de diamante e, envolvendo-o nos seus cabelos, cobriu-o loucamente de beijos...É preciso libertar Pitá e somente uma jovem que o ame apaixonadamente poderá fazê-lo".

Moroti não quis escutar mais nada: amarrou pesada pedra aos pés e deixou-se envolver pelas águas numa renúncia adorável.

Durante todo o dia e quase toda a noite ficaram os parentes aguardando a volta do casal amoroso.

Aos primeiros albores do dia seguinte, viram todos emergir das profundezas das águas uma planta desconhecida, era "irupé": a Vitória Régia.

Do seio potâmico surgiu uma flor, um verdadeiro amor: grande, de cores vivíssimas, perfumada...As pétalas do centro eram alvas como o nome da donzela indígena, Moroti, e as da periferia, vermelhas como o do guerreiro Pitá. A flor irrompeu nas águas, esteve um momento acima do nível das mesmas, deixando espalhar seu perfume e rorejar gotículas, como se fosse uma jovem que saísse do banho... De repente, deu um gemido e desapareceu novamente, no seio das águas de onde despontara.

O pajé explicou:

-"Essa flor representa o amor vencedor. Moroti libertou Pitá dos meneios da feiticeira das águas que tantos guerreiros nos tem roubado. Façamos festa, cantemos, pois "cunhã payé" foi vencida pelo amor puro de Moroti."

E na margem do gigantesco rio, foi improvisada uma festança. Uma cantoria enfadonha exprimia o contentamento daquela gente que acreditava no pajé, que para eles era a encarnação da verdade.

A flor da Vitória Régia só abre de dia. Assim que a terra se cobre de luto da noite, a flor fecha-se de todo e submerge. Nesse momento Pitá e Moroti se abraçam e dormem profundamente até o dia seguinte embalados pelo movimento das águas.

Daquele sono amoroso nascem as sementes que perpetuarão a espécie, caindo ali mesmo no lado do fundo, ou levadas para outras plagas nos intestinos dos peixes e das aves, no pelo dos animais, pela torrente que balança os compridos pecíolos cobertos de acúleos, e pela mão do homem que estuda a Natureza e que ama o belo.

A PLANTA

A Vitória-Régia ama as enchentes e as inundações. Á medida que as águas vão subindo, com elas vão crescendo os longuíssimos pecíolos, que, às vezes, atingem cinco metros de comprimento. Enquanto pequenos, esses pecíolos trazem nas suas extremidades superiores folhas em formas de setas, as quais se vão tornando cada vez mais oblongas até tomarem a face de uma enorme bandeja, quando as águas estiverem na plenitude da cheia. Algumas folhas chegam a cobrir mais de três metros quadrados de superfície azul ou esverdeada das águas onde vicejam.

Os maguaris, as garças e mil outras aves passeiam sobre as lagoas, em todas suas áreas, pisando nas largas lajes vegetais que coalham sua superfície e respiram a fragrância que se desprende das belíssimas flores que embalsamam e o ambiente com um aroma divinal.

Sua flor, chega a ter, em sua plenitude, até quarenta centímetros de diâmetro, e sua cor varia do branco ao carmim, exalando sempre o mesmo perfume incomparável. A época de floração é em janeiro e em fevereiro.

A raiz da Vitória-Régia é um tubérculo parecido com o do inhame, ao qual os indígenas dão o nome de "forno d'água", em função da sua forma ser semelhante a um tacho de torrar farinha. Esses feculentos tubérculos são grandemente apreciados pelos índios, como pelos habitantes ribeirinhos.

Se o nível das águas permanecer alto, estas belas ninfas aquáticas vivem cerca de dois anos. Se porém, as águas descerem, a Vitória-Régia vai definhando, como se a ela faltasse o alimento principal para viver, para o híbrido elemento é o nosso ar.

Em agosto, já se pode apreciar suas gordas cápsulas repletas de sementes que vão se depositando no lodo do fundo. Enterram-se na lama diluída que se endurece totalmente, assim que recebe diretamente a ação vivificante dos raios solares.

Encontram nas sementes, os homens e as aves, um delicioso alimento, esgravatando a terra onde se encontram sepultadas. Na procura desse extraordinário "irupé", o milho da água dos indígenas, agrupam-se garridos bandos de pássaros, exibindo-nos grandioso espetáculo. Com suas ricas e exóticas roupagens de plumas substituem, naquele cenário encantador, os largos mantos verdes enfeitados de flores das vitórias-régias. Esses pássaros levam consigo as sementes e deixam-nas em algum lugar. As águas arrastam também uma quantidade incontável de grãos. é deste modo que se propaga a existência da Vitória-Régia que é encontrada, desde os mananciais dos afluentes da esquerda do rio Amazonas, até os baixos tributários do Paraná e do Paraguai. Designam os botânicos essa dispersão provocada pelos pássaros de "florula ornitocórea" e de "hidrocórea", a produzida pela torrente.

A "Deusa Vegetal" dos lagos e rios, era conhecida dos guaranis que a chamavam de "irupé", outros indígenas tratavam-na de "iapucacaa". Seu nome, como conhecemos hoje, é devido à um botânico inglês, que maravilhado com e exuberância da planta, deu-lhe o nome da Rainha Vitória do Reino Unido.

A Vitória-Régia é conhecida também como "Estrela da Água", porque sua flor desabrocha completamente por volta da meia-noite, para submergir depois, quando fechada. Na manhã seguinte ela aparece e abrindo lentamente as pétalas, exala o mesmo perfume e irradia a mesma beleza.

Estrela das águas, poema triunfal de cor e perfume,

Que cantará eternamente em nossa flora.

Todas as noites desnuda-se,

Arrumando jeitosamente as esvoaçantes e longas pétalas.

Para receber no tálamo das águas mansas,

Os beijos apaixonados das noites de luar.


Índios do Brasil - Lima Figueiredo - Livraria José Olympio

No País das Pedras Verdes - Raimundo Morais

Na Planície Amazonas - Raimundo Morais

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Amazônia, a Terra e o Homem - Araújo Lima

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