28 julho, 2007

Mentiram-me


Mentiram-me.
Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma, completamente.

E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.

Não mentem tristes.
Alegremente mentem.
Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem.
Mentem e calam.
Mas suas frases falam.
E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver a verdade
em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura.

Mas não se chega à verdade pela mentira,
nem à democracia pela ditadura.

Evidente/mente a crer nos que me mentem

uma flor nasceu em Hiroshima

e em Auschwitz havia um circo permanente.

Mentem.
Mentem caricatural- mente.

Mentem como a careca mente ao pente,
mentem como a dentadura mente ao dente,
mentem como a carroça à besta em frente,
mentem como a doença ao doente,
mentem clara/mente como o espelho transparente.

Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente ao ver a nódoa sobre o linho.
Mentem com a cara limpa e nas mãos o sangue quente.
Mentem ardente/mente como um doente em seus instantes de febre.
Mentem fabulosa/mente
como o caçador que quer passar gato por lebre.
E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador com a armadilha.

E assim cada qual mente industrial/mente,
mente partidária/mente,
mente incivil/mente,
mente tropical/mente,
mente incontinente/mente,
mente hereditária/mente,
mente,
mente,
mente.

E de tanto mentir tão brava/mente
constróem um país de mentira
— diária/mente.

Mentem no passado.

E no presente passam a mentira a limpo.
E no futuro mentem novamente.

Mentem fazendo o sol girar em torno à terra medieval/mente.

Por isto, desta vez, não é Galileu quem mente,
mas o tribunal que o julga herege/mente.

Mentem como se Colombo partindo do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.

Mentem desde Cabral, em calmaria, viajando pelo avesso,
iludindo a corrente em curso,
transformando a história do país
num acidente de percurso.

Tanta mentira assim industriada me faz partir para o deserto
penitente/mente,
ou me exilar com Mozart musical/mente
em harpas e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.

Penso nos animais que nunca mentem, mesmo se têm um caçador à sua frente.

Penso nos pássaros cuja verdade do canto nos toca matinalmente.

Penso nas flores cuja verdade das cores escorre no mel silvestremente.

Penso no sol que morre diariamente jorrando luz,

embora tenha a noite pela frente.

Página branca onde escrevo.
Único espaço de verdade que me resta.
Onde transcrevo o arroubo,
a esperança,
e onde tarde ou cedo
deposito meu espanto
e medo.

Para tanta mentira só mesmo um poema explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade.

E a mentira repulsiva se não explode pra fora
pra dentro explode implosiva.

Affonso Romano de Sant'Anna

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