04 fevereiro, 2007

Clarice Sempre

Eu sou pouco, não, sou mesmo um nada para entender o muito de Clarice, mas mesmo assim ela me atrai inexplicavelmente. E como não se sentir atraído por alguém que passava as madrugadas sentada à varanda com a máquina de escrever no colo pronta para transcrever as sensações que afloravam como um vulcão insopitável em toda sua fúria ?

Em Clarice não se lê o que está nas linhas do texto, mas sim aquilo que se esconde entre elas.
"...Escrever é o medo de quem tem a palavra como isca : a palavra pescando o que não é palavra."
"...Sensações que se transformam em idéias porque tenho que usar palavras."

Clarice é assim essencialmente sensorial, uma personagem de sua própria obra, que por sua vez se torna um caldeirão fervente de sensações que na desordem com que são escritos parecem não ter sentido e é justamente no caos que está a simetria.

"...Ouve apenas superficialmente o que digo e da falta de sentido nascerá um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida alta e leve."
"O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa...capta esta outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso."

Numa escrita que não tem preâmbulos ou capítulos onde se possa repousar da leitura, Clarice consegue manter presa a atenção do leitor que ela transforma no parceiro de um dialogo que vai da mais pura poesia à religiosidade, passando, obviamente, pela metafísica:

"Na minha funda noite sopra um louco vento que me traz fiapos de gritos."
"Eu costumava pingar limão em cima da ostra viva e via com horror e fascínio ela contorcer-se toda. E eu estava comendo o "it" vivo. O "it"" vivo é o Deus... a prece mais profunda é uma meditação sobre o nada. É o contato seco e elétrico consigo, um consigo impessoal."

Diante deste caleidoscópio de infindáveis formas tenho um temor profundo de não ter compreendido nem sequer um fragmento infinitesimal do que há na obra, mas tudo bem porque Clarice já me perdoou :

"Sei que depois de me leres é difícil reproduzir de ouvido a minha música, não é possível cantá-la sem tê-la decorado. É como decorar uma coisa que não tem história."
"...Não me posso resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maçãs."

"Água Viva" , de onde retirei os trechos acima, não é, portanto, uma leitura suave para se relaxar antes de dormir. Ë preciso a disposição e a atenção de um soldado em batalha pois, na verdade, é do que se trata a obra , um confronto direto e contundente com as emoções humanas desnudas e como muitas vezes somos recalcitrantes em admitirmos o que sentimos, essa leitura pode se tornar um parto natural e doloroso. Vou emprestar , sem licença, a expressão lida em algum lugar, para sintetizar o que é a leitura de Clarice : "Este livro , um copo de uísque e um revólver...".

No meu caso: este livro, um copo de leite gelado, um pacote de bolacha maisena e um lenço...

2 comentários:

Anônimo disse...

O objetivo de Clarice, em suas obras, é o de atingir as regiões mais profundas da mente das personagens para aí sondar complexos mecanismos psicológicos. Ela se dizia, mais que uma escritora, uma "sentidora", porque registrava em palavras aquilo que sentia. Para Clarice, "Não é fácil escrever. É duro quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados". "Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas". "Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo."

Vera Lucia (a mão que afaga o gato) disse...

Um amigo uma vez me disse que entender o que Clarice escreve é exercitar o nosso eu profundo, exercício que poucos conseguem levar até o fim...eu concordo com ele, data de então meu gosto pela leitura de Clarice, data de então a minha tentativa de chegar a completar o exercício... Um dia quem sabe eu chegue a 1/4 do percurso. Chuás

A bailarina