01 fevereiro, 2007

MPB

Belchior & Zé Ramalho: bastidores de uma tradição falseada

José Nêummane Pinto


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BelchiorZé Ramalho

Um dos golpes de marketing mais inteligentes da história da Música Popular Brasileira foi a estratégia a que os tropicalistas recorreram nos primórdios de seu movimento. Cortejaram a patuléia, mandando o bom-mocismo e, sobretudo, o bom-gostismo da bossa-nova às favas, mas não se esqueceram de bajular um grupo de intelectuais de vanguarda, com prestígio e até legitimidade garantidos nos saraus e salões das metrópoles nacionais e mundiais. Garantiram a comercialização do produto, expondo-o na prateleira popularesca de Abelardo Chacrinha Barbosa, no Rio, mas tiveram o cuidado de filiá-lo à melhor linhagem crítica universitária e bem nascida, comprando a adesão culturalmente corretíssima do grupo Noigandres, de São Paulo. Na verdade, não foi propriamente uma compra, mas, sim, uma troca. Se ganharam com a adesão dos irmãos Campos títulos de nobreza intelectual, Caetano Veloso e Gilberto Gil os retiraram do isolamento aos quais, por mais ilustres que fossem ou sejam, estavam irremediavelmente condenados.

Ninguém reclamou dessa troca, já que, no fundo, não prejudicou a ninguém, a não ser, naturalmente, à lógica plana dos fatos. Enquanto regravava Coração materno, clássico kitsch do repertório de Vicente Celestino, uma espécie de Andrea Boccelli avant-la-lettre e caboclo, Caetano falava em retomar a linha evolutiva da bossa-nova, movimento musical elitista da Zona Sul carioca, que abominava exatamente o exacerbado romantismo populista daquele tenor de ópera circense. Enquanto adulava explicitamente João Gilberto, guindando-o ao altar-mor do fundamentalismo cancioneiro, prevenindo-se com doses maciças de baba contra o folclórico mau humor do genial intérprete, o baiano mais novo servia a seu próprio público uma espécie de xis-tudo, que, no fim das contas, é a melhor definição do tropicalismo.

Há venda, sou a favor – era e é sua permanente (e coerente) bandeira. Ninguém nunca se esqueça de que o mesmo Caetano que carrega o andor do gênio de Juazeiro vende a seu eclético público doses balofas do facilitário da obra popularesca de Peninha, que, graças ao toque mágico de sua garganta, se tornou uma espécie de versão atenuada do bregue-chique, ao qual nunca teve acesso Reginaldo Rossi, em benefício de quem é possível dizer que, pelo menos, é mais autêntico.

O Brasil – como se sabe – é um país de analfabetos. E em terra de analfabeto quem conhece vírgula é mestre, não é mesmo? Pois então. Neste ambiente de amém, aleluia, viva nós, que somos mais espertos, Caetano virou poeta de referência nacional, a ponto de pôr óculos e recitar textos de um livro (Verdade tropical) em um show que, por sinal, se chama Livro. O que leva as manadas aos teatros do País é a dor de corno de Peninha. Mas haverá algo mais in do que ouvir um artista de fama ler alguma coisa, qualquer coisa, em um palco? O show Livro é o primeiro sarau brega da história da cultura brasileira, mas, se o príncipe da sociologia, Efe-Agá-Cê, consagrou o velho baiano moço, citando verso de sua lavra em seu discurso inaugural, quem não haveria de virar o traseiro para o mar e se curvar na direção de Santo Amaro da Purificação para saudar com todas as loas o poeta entronizado?

Mas, mesmo em um país em que até o presidente e intelectual-mor não tem tirocínio bastante para distinguir um poeta de um sambista, vai sempre aparecer algum desmancha-prazeres como Pedro Lyra ou um sujeito irreverente como Bruno Tolentino para chamar a atenção para as sutis distinções existentes entre uma canção e um poema – por mais sofisticada que seja aquele e mais rústico que este seja. Há entre uma letra de música, mesmo que seja de um gênio como Noel Rosa, e um poema de Castro Alves, muito mais distância do que pode sonhar a vasta ignorância presidencial sobre os mistérios gozosos da literatura e das artes musicais. Mas, justiça lhes seja feita, Caetano e Gil não têm culpa nenhuma disso. Não, mesmo. Isso é Brasil, minha gente, e o Brasil somos todos nós, não apenas eles.

Depois, é bom que se diga, aqui não há demérito nenhum de valor. Uma letra de canção pode ser boa e um poema, ruim, a ponto de aquela ser melhor do que este. Só que poema é poema e a música dele é o silêncio, como já ensinavam os mestres clássicos. E letra é letra. A confusão entre uma coisa e outra serve apenas para beneficiar o bolso de quem a instala, aumentando também a ignorância de quem fica babando a ouvir um samba de Chico Buarque, como se estivesse fruindo um poema de Mané Bandeira. Ora, pois!

Víctor ChabQuando afirmo que a confusão interessa a quem a estabelece não estou me referindo apenas a um inócuo debate cultural do tipo quem é o melhor letrista da bossa nova, Vinicius de Moraes ou Newton Mendonça, não. Nada disso! Estou falando aqui é de coisa mais iníqua. Estou falando do tilintar da máquina registradora. O poeta estabelecido, respeitado pelos maiorais da crítica universitária e na imprensa, não apenas senta praça em seu notório talento, mas também afasta das prateleiras das lojas a concorrência indesejável. No negócio milionário e delicado da fonografia, vale tudo – vale até dançar homem com homem e mulher com mulher, contrariando o síndico Tim Maia.

Assim, graças a suas tintas universitárias, os senhores do tropicalismo conseguiram o monopólio da qualidade poética no cancioneiro popular nacional, admitindo apenas alguns sócios de escol, como Chico Buarque e o pessoal do Clube da Esquina. Nesse pega pra capar, sobrou para muita gente boa um lugarzinho remoto no poleiro do circo chamado MPB. A teoria refinada, que consagrou a baboseira da tal retomada da linha evolutiva da verdadeira bossa nova, torceu o nariz para uma geração inteira, que foi capaz de produzir música e letra de excelente qualidade, igual, muitas vezes superior, à média da melhor produção da bossa nova, da geração dos festivais de MPB na televisão e da vanguarda tropicalista.

Zé Ramalho Neto, um sertanejo de voz forte e longas canelas finas, tem lavrado nos últimos anos uma poesia densa, forte e de grande poder de comunicação popular. Já em seu disco de estréia, compareceu com algumas obras-primas, que serão sempre marcantes, caso de Avohai e também de Chão de giz, só para citar as canções que têm atravessado incólumes os últimos 20 anos, sempre frescas, sempre belas.

Mas Zé nunca teve uma crítica capaz de ouvi-lo com a atenção que ele merecia, porque lhe falta talento marqueteiro para explicar na teoria a prática de seu gênio criador. Ele parecia não entender direito aquilo tudo que jorrava de sua garganta e da ponta de seus dedos longos e isso bastava para justificar o parco entendimento da crítica surda, que nunca o ouviu direito. Ele só queria embalar seu público jovem e fiel com suas canções. Vigiaram-no bem e um dia flagraram um deslize seu. Foi o bastante para crucificá-lo. Toda sua obra foi imolada porque copiou uns versos de W. B. Yeats. Quando Caetano copia Zé do Norte em Triste Bahia, ele está citando. Ninguém ouse dizer que ele apenas roubou uns versinhos, até porque ninguém também sabe que Zé do Norte já havia, ele mesmo, furtado os mesmos versinhos de algum anônimo sertanejo perdido em um ermo qualquer do sovaco de serrote, de onde viera. Mas, se Caetano cita, Zé Ramalho plagia. Ponto final.

Muitos anos depois do infeliz acidente, o menestrel de Brejo do Cruz lota as platéias de um público fiel, barulhento e animado, composto quase totalmente por jovens, que nem haviam nascido quando ele compôs Admirável gado novo, a canção que, na trilha da telenovela O rei do gado, o içou do poço ostracismo de volta aos cumes da glória. Profeta visionário, foi posto em um nicho estranho, o de herdeiro de Raul Seixas. Mas, como o maluco beleza, ele não precisa de justificativas teóricas para fazer jorrar seu belo canto. Por isso mesmo, segue em frente sem olhar para trás e sem explicar nada a ninguém.

Se alguém quiser fazer as mesmas perguntas que servem de ponto de partida à verborragia baiana, linha mestra da filosofia tropicalista, terá respostas argutas e teoricamente corretas de um companheiro de geração de Zé Ramalho, o cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Se não lhe fazem essas perguntas, é por algum motivo que se situa entre o não saberem bem de que se trata e não tratarem bem o que se sabe.

A verdade é que o moço de Sobral tem uma obra, construída também nos últimos 20 anos, que em nada fica a dever a nenhum figurão que pertença à seleta hagiografia dos redatores de teses acadêmicas e resenhas jornalísticas. Se Zé Ramalho é o poeta, perdão, é o letrista que melhor transmite o gosto popular pelo absurdo metrificado e rimado, Belchior é o mais arguto cronista do amargo niilismo de uma geração que sangrou e berrou nos porões da ditadura militar, sabendo muito bem que essa democracia que deles emergiu não vale grande coisa, mas também sem saber direito o que propor em seu lugar.

Víctor ChabElis Regina sabia do que se tratava e, por isso, o lançou tirando do nimbo duas obras-primas definitivas do cancioneiro nacional – Como nossos pais e Velha roupa colorida. Mas Elis morreu e é cultuada como uma santa à parte, não como o ouvido maravilhoso que foi capaz de chegar à frente, lançando Milton Nascimento e Renato Teixeira, mas como a afiada garganta privilegiada, cuja técnica insuperável nunca encontrou rival.

Zé Ramalho, Belchior, Fagner e Alceu Valença fizeram uma fusão que é sustança pura. Por isso, também têm clientela – não tanto quanto a de Peninha ou a de Reginaldo Rossi. Mas eles têm, sim, como a contemporânea Elba, uma platéia cativa, capaz de saber ou, pelo menos, de intuir a contribuição que dão ao mercado, injetando-lhe o que de melhor o povo sabe e pode fazer. Ao contrário dos tropicalistas, que se autoproclamam a vanguarda da linha evolutiva da verdadeira bossa nova, mas a falseiam, aqueles, sim, é que são os herdeiros renovadores da tradição que Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro instituíram.

O pop nordestino que compõem e cantam é que revigora a canção popular brasileira, sem que, para isso, seja necessário engrolar todo aquele bla-bla-blá teórico, que não passa de lenga-lenga para vender xarope musical para trouxa ouvir. E dormir em paz. Zzzzzzzzzzzzzz!

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A bailarina